Achavam
que vida e morte eram opostos. Opostos porque, em essência, eram a negação de
um pelo outro, mas se atraíam continuamente: não há vida sem morte nem morte
sem vida. Era tudo que deveriam saber, porque era tudo que havia para
ser conhecido. A sabedoria camponesa tem a pretensão de explicar os fenômenos
que vão além da matéria com base em suposições sustentadas pela lógica, mas que
beiram a loucura. A loucura é inerente ao ser humano, derivada do desespero.
Àquela época, o desespero e a ignorância eram a regra, a ponto de uma falsa verdade alçar-se à verdade absoluta pelo simples fato de reverberar nos
ouvidos das massas. Qualquer crença que fosse capaz de conceder sentido à vida
seria suficiente para tornar soberbos os conhecedores, e servos os que não a
compreendiam.
Pautaram suas vidas nesta dualidade.
Para que viver tivesse sentido era preciso afastar-se da morte. Em meio à
alucinação coletiva, numa tentativa instintiva de integração a uma instância
superior - fosse ela divina ou demoníaca -, ignoravam os pequenos sinais que o
mundo real lhes concedia, mostrando o caminho da verdade. Ainda que a morte se
fizesse mais presente que a vida, em razão de tantas doenças degenerantes,
guerras, festivais populares de sacrifícios e execução de criminosos, insistiam
em superá-la.
Naquele desespero coletivo, na busca incessante por conceder sentido à vida, tratavam a morte como inimiga a ser
combatida. Mas como combater algo impossível de ser
derrotado? O dilema, que se perpetuava
ao longo dos séculos, houvera sido enfrentado por hábeis das mais diversas
especialidades: bruxos, padres, feiticeiros, guerreiros, reis e rainhas. Todos já
haviam despendido suas fórmulas, magias, fortunas, castelos, exércitos e vida
na persecução da resposta, mas todos haviam fracassado.
Assim, sabiam que enfrentavam um
inimigo sem pontos fracos. A morte não poderia ser domada, conduzida, ter seu
fluxo alterado ou tornada mais amena. A morte era simplesmente isso. Morte. Sem
começo, sem meio, apenas fim.
Neste contexto de cegueira coletiva de dualidade entre vida e morte, a melhor maneira de se afastarem da morte era
exaltando a vida. Àquela época, a ignorância camponesa não permitia fazer tal
discernimento racionalmente, mas discerniam-na instintivamente: viver em meio à
morte e a execuções tornara-se recorrente. Matar era institucionalizado, motivo de
festa e de circo. Lançavam pessoas à fogueira. A tortura, passa tempo de final
de tarde. Criminosos lançavam-se aos pântanos amaldiçoados, numa fuga desesperada dos populares que os caçavam para entregá-los aos Senhores Justos, e reivindicavam como única
recompensa o papel de carrasco na execução.
Presenciar a morte era um consolo à
própria vida.
Preocupados demais em se sentirem
vivos, matavam. Idolatravam quem fosse capaz de extrair a vida, e seguiam quem
quer que lhes proporcionem estes prazeres. Os Carrascos eram os heróis do povo; instrumentos de consolação à própria existência. Ainda que a sensação
fosse efêmera, sabendo que pouco tempo depois retornariam ao estado natural de
desespero - de alucinação em busca de um significado -, naquele curto momento de
presença da morte encontravam a serenidade. Estavam vivos e isto, por si só,
era suficiente.
Foi então que as guerras se tornaram
motivo de glória e satisfação. Matar proporcionava a sensação de haver cruzado
o limiar da vida-e-morte cuja travessia apenas aos seres espirituais fora permitido; as vitórias campais entregavam riquezas derivadas dos espólios de
guerra, alçando-os a guerreiros vitoriosos. Manipular a lança e a espada
eram virtudes capazes de conduzir à elevação espiritual. Matar de próprio punho
era mais efetivo que assistir às execuções do Carrasco; os sons metálicos do aço tocando-se nas lutas campais, das flechas cruzando os ares, e os
grunhidos e gemidos de suas vítimas traziam a intensidade e satisfação que
carrasco nenhum seria capaz de proporcionar.
Qualquer um poderia servir à luta
armada. O reino era governado pelo patriarca Hostite. Hostite acreditava na
seleção natural militar. O homem que não soubesse empunhar uma lança e vencer
em campo de batalha, não mereceria a vida, e, por isso, deveria morrer em luta.
Seus métodos eram práticos, não acreditava em treinamentos, em lutas simuladas
com espadas inofensivas. Se fosse para empunhar a lâmina, que fosse para tirar
a vida do adversário, ou para morrer. Tamanha rigidez de conduta mantinha-os
sempre no limite. Estavam preparados para viver, e mais ainda para matar. Rei
Hostite conduzira seu reino a um dos maiores do continente. Seus súditos guerreiros foram temidos e idolatrados, odiados e saldados, eram quase como a vida e a morte.
Até que matar não os regalava com os
mesmos prazeres. Na medida em que matavam, o ato perdia seu efeito. Como tudo,
caíra na rotina. Perdera seu mote, sua força. E, enquanto sentiam que a
contemplação da morte não era mais suficiente para sua elevação espiritual,
desejavam matar ainda mais a fim de justificar sua existência. Nesse momento
houve um desequilíbrio. Se antes contemplar a morte apresentava-se como uma forma de exaltar a
vida, depois, a exaltação da morte passou a ser a razão de suas existências.
A oposição se desfizera. Vida e morte
não eram mais contrários, andavam paralelamente. O exército de
Hostite havia aprendido a buscar a morte como um complemento à própria vida;
eram estados intrínsecos um ao outro, compensavam-se e retro-alimentavam-se;
não havia oposição, senão cumplicidade e complementação.
Entenderam.
Contemplar a extração da vida não mais fazia parte de seus ideais. Queriam a morte para eles mesmos. Suas batalhas e guerras campais ficaram menos numerosas e mais intensas. Não espoliavam mais as cidades, não desejavam objetos luxuriosos, jóias ou terras. Tudo que ansiavam era retirar a vida de todos aqueles que cruzassem seus caminhos. Cravar a espada não era tão prazeroso quanto penetrar a carne com as unhas. Matar se tornou um ritual. Apesar da desordem das batalhas, cada momento era minuciosamente aproveitado, deliciado e regozijado. Podiam sentir o cheiro da carne por morrer. Desenvolverem a preferência por batalhar ao anoitecer. Quanto mais densa a noite, mais serena a floresta e mais alto fossem as labaredas das fogueiras, maior o transe no qual se inseriam.
Contemplar a extração da vida não mais fazia parte de seus ideais. Queriam a morte para eles mesmos. Suas batalhas e guerras campais ficaram menos numerosas e mais intensas. Não espoliavam mais as cidades, não desejavam objetos luxuriosos, jóias ou terras. Tudo que ansiavam era retirar a vida de todos aqueles que cruzassem seus caminhos. Cravar a espada não era tão prazeroso quanto penetrar a carne com as unhas. Matar se tornou um ritual. Apesar da desordem das batalhas, cada momento era minuciosamente aproveitado, deliciado e regozijado. Podiam sentir o cheiro da carne por morrer. Desenvolverem a preferência por batalhar ao anoitecer. Quanto mais densa a noite, mais serena a floresta e mais alto fossem as labaredas das fogueiras, maior o transe no qual se inseriam.
Não poderiam mais viver sem carne nem
sangue. Da utilização da espada como arma, passaram às unhas; das unhas aos
dentes. O ato de matar exigia mais doação, mais cumplicidade entre o viver e o
morrer. Quanto mais intenso fosse o momento, quando mais trouxessem para o seu
próprio corpo a vida do outro ser, maior seria sua elevação e satisfação. Matar
se tornou um prazer. Morder a carne humana, arranhá-la com as unhas e
embriagar-se em sangue eram os ápices de sua realização.
Seus hábitos promoveram mudanças em
seus corpos. Tornaram-se mais rijos, mais fortes, mais pálidos; os olhos
avermelharam-se, tal como o sangue que ingeriam diariamente. Digerir a carne
humana tornava-os menos homens. Seus sentidos se aguçaram: ouviam melhor e mais
longe, os olhos adaptaram-se à escassez da luz noturna e seus olfatos percebiam
odores a centenas de metros de distância. Ficaram menos propensos a doenças. A
conduta diabólica que haviam ingressado implementou mudanças em suas
existências tanto em âmbito carnal quanto espiritual. Não eram mais seres
humanos. Haviam cruzado o limite da deliquência e da própria vida.
Mudaram para melhor.
O exército passou a comandar a si
mesmo. Hostite enlouquecera ao perceber que seu excesso de rigidez fizera de
sua armada um grupo de canibais insaciáveis. Antes, porém, tentou impedi-los,
sem sucesso. A consciência de grupo de seu exército já se formara. Não
desejavam mais parar de guerrear, pois, a carne humana tornara-se seu vício.
Não lutavam por bandeira senão sua própria. Vagavam pela noite em busca da
próxima aldeia, sempre sedentos por sangue. Mas Hostite, que fora o grande
mentor, o responsável pela criação da armada da morte, apesar da traição, seria
sempre a referência do grupo. Era admirado pelo chefe que fora. Por isso, foi
capturado e banqueteado por cada um daqueles guerreiros que lhe haviam jurado
proteção eterna. Tiveram todos a oportunidade de provar um pouco da carne real
e ingerir sua história a fim de imortalizá-la em seus corpos demoníacos.
Histórias sobre as batalhas
espalharam-se pelo continente. Os poucos que sobreviveram à voracidade dos
ataques bradavam a todos os ventos sobre os terrores que lhes acometeram.
Falavam de homens cinzentos, com força desumana, de olhos que lacrimejavam
sangue, que matavam com unhas e dentes e só atacavam à noite. Falavam
deles. Cantavam sobre eles.
Em sua loucura coletiva, na tentativa
desesperada de se afastar a morte, descobriram que não há nada a ser afastado.
Viver e morrer andam lado a lado; somente serão capazes de viver eternamente
aqueles que aprenderem a apreciar e a ingerir a morte. Esta era a verdade que
todos buscavam, mas que apenas aqueles homens haviam encontrado. Vislumbraram o
sentido da vida na morte, por ela alcançando a imortalidade. Eles, Vampiros de
Hostite, inauguraram uma nova era.
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