― Pronto!
― invocou Lácio aliviado.
No exato momento em que terminara sua obra, a argila
ensaiou alguns movimentos, sem qualquer coordenação. Por mais que Lácio fosse
habituado à arte de esculpir, os primeiros minutos após o término das
esculturas sempre lhe causavam ansiedade. Especialmente naquele prédio
centenário em que ficava o colégio. Não é que Lácio não estivesse preparado
para ver o seu desfecho, ao contrário. Sua coragem o deixava afiado para
qualquer desdobramento a partir de então, para o bem ou para o mal; só que as
últimas semanas haviam sido de tantas revelações, que andava desconfiado, como
se a qualquer momento alguma novidade o surpreenderia novamente.
― Vai, levanta e dá alguns passos! ― incentivou em
vão.
A escultura recém terminada continuava sem esboçar
ação que remetesse a algum resquício de atividade coordenada. Não fossem
espasmos aleatórios no solo, Lácio ter-le-ia dissolvido em água.
― Hum, deve ter faltado alguma coisa, mas eu segui à
risca as orientações do professor.... Ah, é claro!
Olhando ao redor, percebeu que esquecera de polvilhar
sobre sua escultura argilosa um pouco da tintura em pó, dada pelo Professor
Renícolas, para concluir a tarefa. O pó continha propriedades mágicas. Sua
origem e composição eram ignoradas por Lácio. Mas isso não o interessava àquela
altura. Tudo o que ansiou fora ver concluída sua obra, o quanto antes.
― A aula já vai começar, é melhor eu acabar logo com
isso.
Lácio lançou sua mão sobre o pequeno pires que
descansava à mesa de madeira; com as pontas dos dedos, retirou uma pequena
porção da tintura em pó e lançou-a sobre o boneco marrom.
O pó era branco, e mais parecia talco do que qualquer
outra coisa. Se fosse amarelo, Lácio não seria capaz de diferenciá-lo. O quarto
estava fracamente iluminado pelo candelabro fixado na parede à altura da
maçaneta da porta. Pra piorar, as paredes cinzas, de pedra aparente, pouco
refletiam a vacilante luz que queimava no objeto. Ao menos a ausência de
janelas não permitia a passagem de correntes de ar que pudessem ameaçar a
tranquilidade das chamas. O Atelier em que se encontrava Lácio não era dos mais
aprazíveis. O chão, também de pedra, há tempos não sentia as cerdas das
vassouras. Era tanta a poeira acumulada no chão que, vez ou outra, arrancavam
do aprendiz alguns espirros.
As partículas da tintura em pó lançaram-se calmamente
dos dedos de Lácio e, com absoluta suavidade, aterrissaram sobre o boneco de
massa fresca. Cada partícula que tocava a superfície da argila produzia um
lindo efeito de resplandecência: cintilava lindas luzes brancas, como faróis de
carros ao término da estrada, e se incorporava ao material amarronzado,
transformando-o num belo branco aveludado.
― Dá gosto de ver, mesmo! ― falou Lácio consigo
mesmo.
Em poucos segundos, o boneco de argila, aparentemente
inacabado, havia incorporado para si todo o “talco mágico”: o que antes era
marrom tornou-se branco gélido. Os movimentos involuntários da pequena
escultura também cessaram. Lácio continuou aguardando pacientemente. Mais
alguns segundos e nada de movimento. Mais alguns outros, e também nada.
Permaneceu sem esboçar reação, mas as transformações
continuavam. A pequena escultura, agora friamente branca, passava por
alterações ainda mais interessantes. Claramente sofria um pequeno ajuste de
proporções, de melhoria do acabamento, por assim dizer. Muito embora fosse um
exímio escultor para sua idade, tendo iniciado na arte pelas mãos de seu Pai
antes mesmo de aprender a falar e a andar, esculpir bonecos daquele tamanho,
tão pequeno quanto uma laranja lima, era difícil para qualquer escultor
profissional, quanto mais para um jovem como ele. Problemas no acabamento
destes pequenos objetos são mais do que naturais, pela própria limitação
imposta pelos brutos instrumentos utilizados. Apesar disso, Lácio não esquecera
das palavras de seu professor ― comece pequeno, para não se cansar demais.
― Acho que levei as recomendações muito ao pé da
letra ― pensou o jovem aprendiz ― talvez algo do tamanho de uma bola de futebol
fosse melhor.
Em pouco tempo, as transformações mágicas que se
seguiram à salpicada do do pó mágico cessaram por completo. A escultura,
perfeitamente proporcional em todas as suas partes e notadamente recortada por
relevos e depressões que lembravam os músculos humanos, restava deitada ao
solo, imóvel. O pequeno boneco argiloso ficara muito melhor acabado. Tinha a
silhueta do corpo humano, apesar do branco gelo que lhe recobria, e o pequeno
tamanho.
― Hum, segundo o manual, agora eu preciso invocar
alguma palavra de ordem. Tipo... Anda!? ― hesitou o jovem, enquanto folheava as
páginas do Grimório do Escultor ― ou, apenas, manual ― recebido de seu mestre,
tentando farejar pistas sobre o que fazer em seguida.
Lácio por alguns instantes desviou sua atenção da
escultura recém acabada, enquanto procurava maiores detalhes no texto.
Deparou-se com o seguinte parágrafo:
Uma vez concluída sua obra, o criador deverá invocar
verbos no imperativo a fim de comandar sua criatura. Lembre-se que tudo aquilo
que precisar ser dito, na verdade não precisa, basta ser pensado: a idéia
origina a obra, o coração a desenvolve, e as mãos a aperfeiçoam.
No
canto da página, à caneta, Lácio leu a anotação que ele mesmo fizera na aula do
Professor Renícolas, naquela manhã: O
criador é igual à criatura. Um coração, uma mente, um desejo.
― Na
aula isso pareceu ter mais sentido, mas agora tá uma viagem só ― asseverou
Lácio, coçando a cabeça ― mas vamos fazer como manda o livro. Anda! ― comandou.
Ao
retornar os olhos para o chão, onde deveria estar sua mini escultura, Lácio tem
uma surpresa.
―
Sumiu! Cadê? Tava aqui no chão, quietinha. ― reclamou, visivelmente irritado.
Imediatamente,
Lácio começou a procurar a sua volta. Embaixo da cadeira, debaixo da mesa,
atrás da porta, nas paredes e no teto ― afinal, era bem provável que um ser
desses aí subisse pelas paredes. Quem sabe até voasse.
―
Esse pedaço de barro deve ter obedecido ao meu comando já na primeira vez,
enquanto eu ainda tava folheando o Livro ― pensou ― mas deixa pra lá. Depois eu
procuro, vou pra sala que já passou da hora.
Sem
saber onde o boneco de talco (como ficou apelidado tempos depois) havia se
metido, Lácio empurrou todos os instrumentos espalhados sobre a mesa para
dentro da mochila, retirou às pressas o avental e, atrasado, tomou o rumo da
sala de aula, a passos largos.
― É
hoje que o Prof. Renícolas não sai do meu pé.
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