quarta-feira, 3 de abril de 2013

Escultor Aprendiz


― Pronto! ― invocou Lácio aliviado.
No exato momento em que terminara sua obra, a argila ensaiou alguns movimentos, sem qualquer coordenação. Por mais que Lácio fosse habituado à arte de esculpir, os primeiros minutos após o término das esculturas sempre lhe causavam ansiedade. Especialmente naquele prédio centenário em que ficava o colégio. Não é que Lácio não estivesse preparado para ver o seu desfecho, ao contrário. Sua coragem o deixava afiado para qualquer desdobramento a partir de então, para o bem ou para o mal; só que as últimas semanas haviam sido de tantas revelações, que andava desconfiado, como se a qualquer momento alguma novidade o surpreenderia novamente.
― Vai, levanta e dá alguns passos! ― incentivou em vão.
A escultura recém terminada continuava sem esboçar ação que remetesse a algum resquício de atividade coordenada. Não fossem espasmos aleatórios no solo, Lácio ter-le-ia dissolvido em água.
― Hum, deve ter faltado alguma coisa, mas eu segui à risca as orientações do professor.... Ah, é claro!
Olhando ao redor, percebeu que esquecera de polvilhar sobre sua escultura argilosa um pouco da tintura em pó, dada pelo Professor Renícolas, para concluir a tarefa. O pó continha propriedades mágicas. Sua origem e composição eram ignoradas por Lácio. Mas isso não o interessava àquela altura. Tudo o que ansiou fora ver concluída sua obra, o quanto antes.
― A aula já vai começar, é melhor eu acabar logo com isso.
Lácio lançou sua mão sobre o pequeno pires que descansava à mesa de madeira; com as pontas dos dedos, retirou uma pequena porção da tintura em pó e lançou-a sobre o boneco marrom.
O pó era branco, e mais parecia talco do que qualquer outra coisa. Se fosse amarelo, Lácio não seria capaz de diferenciá-lo. O quarto estava fracamente iluminado pelo candelabro fixado na parede à altura da maçaneta da porta. Pra piorar, as paredes cinzas, de pedra aparente, pouco refletiam a vacilante luz que queimava no objeto. Ao menos a ausência de janelas não permitia a passagem de correntes de ar que pudessem ameaçar a tranquilidade das chamas. O Atelier em que se encontrava Lácio não era dos mais aprazíveis. O chão, também de pedra, há tempos não sentia as cerdas das vassouras. Era tanta a poeira acumulada no chão que, vez ou outra, arrancavam do aprendiz alguns espirros.
As partículas da tintura em pó lançaram-se calmamente dos dedos de Lácio e, com absoluta suavidade, aterrissaram sobre o boneco de massa fresca. Cada partícula que tocava a superfície da argila produzia um lindo efeito de resplandecência: cintilava lindas luzes brancas, como faróis de carros ao término da estrada, e se incorporava ao material amarronzado, transformando-o num belo branco aveludado.
― Dá gosto de ver, mesmo! ― falou Lácio consigo mesmo.
Em poucos segundos, o boneco de argila, aparentemente inacabado, havia incorporado para si todo o “talco mágico”: o que antes era marrom tornou-se branco gélido. Os movimentos involuntários da pequena escultura também cessaram. Lácio continuou aguardando pacientemente. Mais alguns segundos e nada de movimento. Mais alguns outros, e também nada.
Permaneceu sem esboçar reação, mas as transformações continuavam. A pequena escultura, agora friamente branca, passava por alterações ainda mais interessantes. Claramente sofria um pequeno ajuste de proporções, de melhoria do acabamento, por assim dizer. Muito embora fosse um exímio escultor para sua idade, tendo iniciado na arte pelas mãos de seu Pai antes mesmo de aprender a falar e a andar, esculpir bonecos daquele tamanho, tão pequeno quanto uma laranja lima, era difícil para qualquer escultor profissional, quanto mais para um jovem como ele. Problemas no acabamento destes pequenos objetos são mais do que naturais, pela própria limitação imposta pelos brutos instrumentos utilizados. Apesar disso, Lácio não esquecera das palavras de seu professor ― comece pequeno, para não se cansar demais.
― Acho que levei as recomendações muito ao pé da letra ― pensou o jovem aprendiz ― talvez algo do tamanho de uma bola de futebol fosse melhor.
Em pouco tempo, as transformações mágicas que se seguiram à salpicada do do pó mágico cessaram por completo. A escultura, perfeitamente proporcional em todas as suas partes e notadamente recortada por relevos e depressões que lembravam os músculos humanos, restava deitada ao solo, imóvel. O pequeno boneco argiloso ficara muito melhor acabado. Tinha a silhueta do corpo humano, apesar do branco gelo que lhe recobria, e o pequeno tamanho.
― Hum, segundo o manual, agora eu preciso invocar alguma palavra de ordem. Tipo... Anda!? ― hesitou o jovem, enquanto folheava as páginas do Grimório do Escultor ― ou, apenas, manual ― recebido de seu mestre, tentando farejar pistas sobre o que fazer em seguida.
Lácio por alguns instantes desviou sua atenção da escultura recém acabada, enquanto procurava maiores detalhes no texto. Deparou-se com o seguinte parágrafo:

Uma vez concluída sua obra, o criador deverá invocar verbos no imperativo a fim de comandar sua criatura. Lembre-se que tudo aquilo que precisar ser dito, na verdade não precisa, basta ser pensado: a idéia origina a obra, o coração a desenvolve, e as mãos a aperfeiçoam.
           
            No canto da página, à caneta, Lácio leu a anotação que ele mesmo fizera na aula do Professor Renícolas, naquela manhã: O criador é igual à criatura. Um coração, uma mente, um desejo.
            ― Na aula isso pareceu ter mais sentido, mas agora tá uma viagem só ― asseverou Lácio, coçando a cabeça ― mas vamos fazer como manda o livro. Anda! ― comandou.
            Ao retornar os olhos para o chão, onde deveria estar sua mini escultura, Lácio tem uma surpresa.
            ― Sumiu! Cadê? Tava aqui no chão, quietinha. ― reclamou, visivelmente irritado.
            Imediatamente, Lácio começou a procurar a sua volta. Embaixo da cadeira, debaixo da mesa, atrás da porta, nas paredes e no teto ― afinal, era bem provável que um ser desses aí subisse pelas paredes. Quem sabe até voasse.
            ― Esse pedaço de barro deve ter obedecido ao meu comando já na primeira vez, enquanto eu ainda tava folheando o Livro ― pensou ― mas deixa pra lá. Depois eu procuro, vou pra sala que já passou da hora.
            Sem saber onde o boneco de talco (como ficou apelidado tempos depois) havia se metido, Lácio empurrou todos os instrumentos espalhados sobre a mesa para dentro da mochila, retirou às pressas o avental e, atrasado, tomou o rumo da sala de aula, a passos largos.
            ― É hoje que o Prof. Renícolas não sai do meu pé.



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